É provável que entre projeto e construção existam cerca de mil novas unidades hospitalares sendo erguidas no país. Só o Governo Federal anunciou, em julho de 2013, investimentos para construção de 818 Hospitais, 601 UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), mais de 15 mil Unidades Básicas, e 14 Hospitais Universitários (R$ 7,4 bilhões). Trata-se de números expressivos, embora, por enquanto, sejam só números.
Uma das indagações mais frequentes é se essa massa de novos leitos engloba (1) cuidados gerais, (2) cuidados especializados (média ou alta complexidade) ou (3) cuidados paliativos. Um Hospital Geral (também conhecido como Policlínica) destina-se à prestação de atendimento nas especialidades básicas, com forte concentração em serviços de Urgência/Emergência. Já o Hospital Especializado, segundo modelo conceitual do DATASUS, destina-se à prestação de assistência à saúde em uma única especialidade/área, podendo dispor de serviços de Emergência e SADT. Normalmente, a especialização torna o hospital uma referência regional, estadual, e até mesmo mundial.
O aqui denominado hospital paliativista não tem nada a ver com a medicina paliativa, um ramo que atua em doenças avançadas, terminais, muitas vezes sem cura, e que objetiva ajudar o paciente a viver e a morrer dignamente. Nosso paliativista refere-se ao hospital sem rumo, sem diretriz, que se deixa levar por políticas utilitaristas circunstanciais, que não tem metas e nem planejamento, que possui baixa governabilidade, ausência de vocação assistencial e que quase sempre é servil às estruturas de poder em seu entorno. São como garrafas no oceano. Navegam ao sabor das ondas, sem controle e quase sempre caminhando em direção ao definhamento na praia.
Um dos grandes debates iniciado na segunda metade do século XX, envolve quase todas as áreas do setor de serviços (não só Saúde). A pergunta “ser ou não ser” é persistente: generalista ou especialista? Qual caminho seguir? O debate ocorreu (e ainda ocorre) no campo das profissões, funções e mesmo no ideário acadêmico. Tudo se resume em acompanhar ou não a tendência capitalista-globalizante dos tempos atuais: a especialização.
No setor de Saúde a discussão tomou proporções irreversíveis, já que boa parte da função médica está cada vez mais especializada. Médico Especialista é aquele que possui título oficial em uma das 53 especialidades reconhecidas no país (contra 30 no Reino Unido), e o Médico Generalista é aquele que não possui título formal em qualquer das especialidades. O generalista está desaparecendo, minguando, tornando-se quase um solitário devoto da prática médica familiar (ou emergencial). Certamente que no primary care o generalista é imprescindível, mas na escolha profissional, durante sua formação acadêmica, o médico é quase sempre induzido a se especializar.
Segundo o estudo “Demografia Médica no Brasil – Cenários e Indicadores de Distribuição” (2013), desenvolvido pelo CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) e pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), dos 388.015 médicos em atividade no Brasil, 53,57% – ou 207.879 deles –, têm uma ou mais especialidade. Os outros 180.136 profissionais, ou 46,43% do total, não têm titulo de especialista emitido por sociedade de especialidade ou obtido após conclusão de Residência Médica. São chamados de generalistas.
Encontramos entusiastas tanto para o expansionismo hospitalar generalista, quanto para o especialista. A primeira corrente, que geralmente se autointitula “progressista”, discorre longamente sobre a necessidade de a sociedade ter cada vez mais hospitais especialistas. Para eles, pós-diagnóstico, o paciente deve ser “adotado” por àqueles que detêm expertise, experiência, equipamentos e rotinas hospitalares concentradas nos procedimentos terapêuticos da especialidade. Assim, caberia aos Hospitais Gerais a função básica do primeiro-atendimento emergencial ou ambulatorial.
Já os que advogam a necessidade de ampliar o parque de hospitais generalistas, defendem que o paciente seja “percebido como um todo, no seu contexto familiar e em seu ambiente social”. Para essa corrente, a medicina está perdendo a sua capacidade de prestar cuidados holísticos. Também, avaliam eles, a perda do “sentido generalista” obriga o paciente a ser orientado de um especialista a outro, sem ninguém assumir a responsabilidade global de seus cuidados.
Talvez exista uma terceira corrente, medianamente localizada, que postula a necessidade de se reinventar o generalismo no ambiente hospitalar. Ou seja, o cuidado geral ao paciente internado não deveria ser feito unicamente pelo médico generalista, mas por uma cadeia de profissionais cuja enfermagem teria um papel de fundamental importância. Para eles, com a radical revolução das estruturas de diagnóstico, e a complexidade das demandas dos pacientes, seria mais apropriado desenvolver equipes multidisciplinares, incluindo no foco o atendimento pós-internação (como ocorre, por exemplo, no Canadá). Está claro que pacientes carecem de cuidados especialistas e generalistas, mas o que não está claro para a grande maioria das partes é como integrá-los em benefício do paciente (e não só interagir). Esse ainda é um problema, principalmente no Brasil, onde a comunidade médica revindica soberania sobre seus pacientes.
Já o hospital paliativista, com características geneticamente do setor público, possui médicos generalistas e especialistas, mas atua quase sempre em funções emergências, possuindo pouca consistência ambulatorial e nenhum comprometimento com resultados efetivos. Ninguém nasce paliativista, torna-se quando perde o prumo.
Hospitais sempre precisam prover atenção generalista e especialista. Todavia, nem sempre a criação de leitos com perfil especialista atende aos interesses dos Sistemas de Saúde. Nações com graves problemas assistenciais no primeiro atendimento (como Brasil, Índia, China, etc.) certamente carecem de grandes esforços no sentido de disponibilizar leitos que abriguem pacientes de urgência e emergência. Todavia, em alguns desses países, os Hospitais Gerais tendem historicamente a lotear seus espaços para as especialidades, “roubando” metros quadrados da Atenção Básica. Essa anarquia reduz a importância das Unidades Ambulatoriais (não necessariamente hospitalares), relegando a elas menor importância no contexto assistencial (quase 30% das internações hospitalares poderiam ser tratadas em ambulatórios). O resultado são Policlínicas com superocupação, mal dimensionadas, com grande carência de triagem e inúmeros problemas gerenciais. Aos poucos, gradualmente, tendem ao paliativismo hospitalar.
No Brasil, a hierarquização dos níveis hospitalares (primário, secundário ou terciário) funciona bem no papel, mas nem sempre corresponde à realidade. Um hospital primário (ou unidade mista) pode não ter nenhuma especialidade, tendo apenas médicos generalistas (Unidades Básicas de Saúde ou Postos de Saúde). Já o hospital geral (nível secundário) atende a pacientes clínicos, cirúrgicos e obstétricos, prestando assistência nas especialidades médicas básicas (Clínicas, Unidades de Pronto Atendimento e Hospitais Escolas). O terciário atende pacientes que carecem de cuidados de média e alta complexidade, contemplando também as disciplinas mais comuns, incluindo cirurgia. O nível terciário é o vértice da saúde regional, servindo como hospital de base ou de referência.
Entretanto, o que se vê na pratica é uma enorme “salada assistencial”. Todos atendem um pouco de tudo, muito do geral e quase nada do que deveriam atender de acordo com o mapa de carências de sua comunidade. Ou seja, começam cheios de boas intenções (generalistas ou especialistas) e aos poucos vão se decompondo e aceitando uma inevitável predisposição paliativista. O resultado ao longo do tempo está claro: transformam-se em hospitais mal gerenciados, com governabilidade confusa e oportunista, sem prumo ou macrodiretrizes claras, tornando-se aos poucos inadministráveis.
Esse é o retrato do sistema hospitalar nacional, guardadas as honrosas exceções de sempre, e as laboriosas instituições que lutam diariamente para se livrar desse carma. No relatório do Banco Mundial, publicado pelos pesquisadores Gerard M. La Forgia e Bernard F. Couttolenc em 2010 (“Desempenho Hospitalar no Brasil”), as conclusões são claras: “…as determinantes da ineficiência e baixa qualidade dos hospitais no Brasil podem ser divididas em cinco áreas críticas: (1) governança hospitalar rígida e com baixa responsabilização; (2) coordenação frágil e planejamento distorcido da capacidade; (3) financiamento passivo, distorcido e diluído; (4) ausência de programas sistemáticos e contínuos para padronizar tratamentos e medir a qualidade; e (5) ausência de informações adequadas para tomada de decisão”.
A escolha entre um Hospital Geral ou Especializado sempre dependerá de inúmeros fatores, tais como, perfil da região (se metropolitana, um generalista poderá se integrar às clinicas especializadas em seu entorno), as carências sanitárias da comunidade, o perfil socioeconômico dos consumidores, as características epidemiológicas regionais, etc.
Um estudo publicado pelo International Journal for Quality in Health Care, realizado por pesquisadores da Universidade de Newcastle (Austrália), avaliou 275 pacientes com insuficiência cardíaca congestiva, que foram acompanhados desde a admissão hospitalar até um ano após a alta. Destes, 102 foram atendidos por cardiologistas e 154 por generalistas. O estudo revelou que os doentes atendidos pelos generalistas eram mais velhos, tinham uma maior comorbidade, mas parecia que sua doença cardíaca era menos grave do que àqueles tratados pelos cardiologistas (as drogas cardíacas e as investigações foram semelhantes nos dois grupos). Por outro lado, os pacientes acompanhados pelos generalistas tiveram maior tempo de permanência hospitalar, enquanto os apoiados pelos cardiologistas tiveram maior mortalidade durante o período de acompanhamento. A conclusão inevitável é que generalistas e especialistas são imprescindíveis, cada um ao seu modo, e ao seu tempo. Mas também está claro de que a sua convivência sempre dependerá de um vetor nevrálgico: integração.
Para hospitais privados, cujo lucro (ou equilíbrio financeiro) é o dínamo propulsor, existe a questão das dimensões físicas da instituição (número de leitos). Se por um lado os hospitais de grande porte têm melhor “rentabilidade”, o mesmo não ocorre quanto a sua governabilidade. O Brasil possui uma malha hospitalar com 50% de instituições de pequeno porte (inferior a 50 leitos). Se estes são mais fáceis de inicializar, são perniciosamente mais complicados de serem rentáveis. Ou seja, mais do que especificar o seu perfil (especialista ou generalista), é necessário ajustar seu tamanho ao império da governabilidade e da rentabilidade. É pouco provável que um novo hospital oncológico-infantil na periferia da cidade de São Paulo tenha problemas de demanda, mas é quase certo que sua pequena dimensão física (baixo número de leitos) será crítica para estabelecer se o resultado virá em curto, médio ou longo prazo, ou mesmo, se nunca virá.
O Brasil possui 6.793 hospitais, sendo 70% privados (dados de janeiro de 2014, do CNES). A maioria dos públicos é municipal (76%). Nosso modelo é médico-hegemônico, centrado em procedimentos, voltado para quadros agudos, e organizado por demanda espontânea (alta fragmentação e desarticulação). Trata-se, pois, de um quadro gerador de insatisfação aos usuários, com ineficiência, ineficácia e baixo impacto assistencial. Nesse cenário de convalescência institucional qualquer planejamento pode estabelecer a necessidade de se construir (ou ampliar) hospitais dentro de um perfil generalista ou especialista. A única coisa a se evitar é que o mesmo se transforme em paliativista.
Guilherme S. Hummel é consultor senior, pesquisador e head mentor do eHealth Mentor Institute (EMI).
Autor dos livros: “eHealth – O Iluminismo Digital chega a Saúde”; “ePatient – A Odisséia Digital do Paciente em Busca da Saúde” e
“eDoctor – A Divina Comédia do Médico e a Tecnologia”.
