Planejamento Estratégico – Quem sou eu
Por Guilherme S. Hummel

planejamento2Uma manhã qualquer. Levantamos e ao olhar no espelho nos perguntamos: “afinal, quem sou eu?”. Não é só curiosidade, ou sinal de stress, mas principalmente nossa busca constante para encontrar sentido em muitas das coisas que fazemos, ou que deixamos de fazer. Também não existe uma resposta simples, e desde Freud, passando por Lacan, a resposta passa necessariamente por um tratamento analítico, e, principalmente, pelo interesse que nos anima em responder essa delicada indagação. Todavia, saber quem somos é imperativo para saber quem podemos ser.

Um dos grandes debates na conceituação hospitalar, legado do Século XX, é como as instituições se posicionam diante da chamada engenharia vocacional. Ou seja, será que as entidades sabem o porquê e para que existem? Será que está claro para cada hospital a diferença, por exemplo, entre a sua missão humanitária e a sua missão corporativa? Os hospitais sabem por que são o que são? Planejar é um encontro com o espelho, e planejamento estratégico é o caminho que podemos trilhar para chegar onde queremos.

Em planejamento, é necessário esse encontro com o “espelho”. Um dia o hospital deve perguntar ao próprio hospital: Quem sou eu? Posso ser o que sou, ou estou esticando a corda para ser o que os outros querem que eu seja? O que serei amanhã? O que quero ser daqui a cinco ou dez anos? O que o meu paciente é para mim: um cliente, uma causa, um benefício, um problema…? Que parâmetro de relacionamento devo estabelecer com minhas fontes pagadoras: uma visão capitalista,  uma relação médica, uma vertical acionista, etc?

Na psicanálise, essas dúvidas talvez sugerissem uma crise de identidade. No planejamento, elas são um guia. Esse o rol de perguntas é o que faz toda a diferença na construção de um Plano Estratégico. São as perguntas mandatórias, sendo todas as demais secundárias. Infelizmente, a grande maioria dos hospitais não consegue respondê-las, ou se quer consegue perguntá-las. O resultado é que todas as projeções – núcleo estratégico de um plano – são uma sucessão de equívocos, abstrações e incongruências.

Um hospital ligado a uma cooperativa médica, por exemplo, quase sempre se percebe como um braço da cooperativa, podendo até ser deficitário desde que a cooperativa não tenha vermelho em seu balanço. Certo ou errado? É improdutível viver com a ideia de que “meu destino está selado”, e que minha degeneração financeira pode garantir o equilíbrio de meu patrono. No Século XXI isso não tem mais lógica. O resultado será sempre a desgovernança econômica de ambas as partes.

Uma determinada Santa Casa pode se ver como um grande centro humanitário em sua comunidade. Sua percepção indica que seu destino é ser um núcleo de coragem e obstinação, que não pode ficar atrelado a resultados econômicos ou práticas capitalistas.  Ser um bastião de integridade moral e um norte para a assistência social é a sua missão. Certo ou errado? Inegavelmente isso é a mais pura verdade se analisarmos somente pela lógica assistencial, mas na visão preservacionista trata-se de um sólido equívoco. Talvez a questão correta para uma Santa Casa seja: como posso ser mais útil, sendo menos dependente de soluções exógenas? Será que estou condenada a ser eternamente um centro de produção de déficits?  Aliás, parece ser esse o pensamento do Papa Francisco, que vem atuando no sentido de desmantelar uma corrente de equívocos financeiros, muitos deles produzidos sem qualquer pragmatismo gerencial, e que afundam a Igreja num colossal déficit. E vale notar que as Santas Casas no Brasil são um dos gêneros do sistema mais bem gerenciados, um núcleo consagrado de competência e seriedade.

Quem sou eu é a pergunta chave. Depois dela vem: quem eu quero ser? Respondidas as duas primeiras, a terceira (“será que posso ser o que desejo ser?”) será respondida através do planejamento estratégico. É para isso, e somente para isso, que ele existe. Cabe a ele, e dentro dele, estabelecer como e quando é possível chegar lá. O que regula a necessidade do Plano Estratégico é o risco. À medida que este aumenta, aumenta a necessidade do Plano. Talvez não saibamos o que vai acontecer nos próximos anos no setor hospitalar, mas é difícil imaginar que qualquer coisa que ocorra não esteja banhada em risco.

Todos os que se debruçam anualmente para estudar as estratégias de seus hospitais para o ano seguinte não conseguem se desvencilhar de outra pergunta: qual Brasil vamos usar como referência? Em Saúde não existe uma única pátria amada, mas muitas. As variáveis do setor são diferentes em cada Estado, e mesmo dentro deles existem enormes oscilações. Assim, quando os planejadores precisam eleger um cenário para estudar o comportamento de sua organização, quase sempre operam dentro de uma banda de erro larga. O risco não gosta do erro, e a gestão não gosta do risco. Conclusão: quase todos nivelam por cima suas projeções de custeio, e para baixo as estimativas de investimento. Manter-se na defensiva passa a ser uma lei.

A tomada de decisão em Saúde será sempre diferente para cada segmento do mercado hospitalar, e nesse sentido é preciso deixar bem claro em qual segmento o hospital se encontra: público ou privado, médio ou grande porte, baixa ou média complexidade, por Estados, por Região, por perfil corporativo, por perfil de contratação médica, etc. O problema não está na identificação de qual é o seu segmento de mercado, supondo que cada um já respondeu a primeira questão (“quem sou eu?”), mas encontrar informações estatísticas, mercadológicas, oficiais e setoriais sobre cada segmento. Encontrar dados seguros e regulares no Brasil é uma aventura. Mesmo dados macroeconômicos muitas vezes são incertos. Um determinado ministro da Fazenda, por exemplo, é pródigo em estabelecer projeções equivocadas. Nem mesmo os dados oficiais deixam de ser acusados de conter maquiagem.

A falta de informação setorial em Saúde torna o Brasil uma nação empírica. O que vale é a experiência de cada um, em cada momento. Existem poucos dados atualizados. O Estado não os quer, ou não sabe como obtê-los, ou não se interessa em fazê-lo. A iniciativa privada, por outro lado, guardadas as exceções de sempre (ANAHP, FGV, IEE, etc.), ainda que produza relatórios setoriais ocasionais, não tem cacife para manter regularidade e poder de análise.

No fundo, prover Planejamento Estratégico em Saúde é uma das mais árduas tarefas de qualquer gestor, embora gerenciar sem ele é avizinhar-se perigosamente do fracasso.  Em geral os gestores não aprendem com o erro ou acerto de seu planejamento, mas com o erro de não ter planejamento. Planejar no Brasil é, portanto, um ato de bravura, uma epopeia, um aclive, e não “a maravilhosa experiência de descobrir caminhos”, como escreveu Peter Drucker.

Nesse calvário, plano estratégico confunde-se com plano econômico, ou plano de marketing, ou plano de contas, e, inúmeras outras práticas que envolvem planejamento, mas que não induzem ou inspiram a corporação (ou instituição) a seguir numa determinada direção.  Não uma direção qualquer, mas aquela em que a organização escolheu estar inserida. A direção final, cravada no Plano, tem de ser o desejo da corporação. Todas as pontes que devem ser construídas para se chegar ao destino estarão desenhadas nas estratégias do plano. Não se trata de ir numa direção porque todos para lá caminham, mas de escolher aquela que sua apetência empresarial lhe indica.

Quando isso não é estrategicamente planejado, a improvisação assume o leme, o tendencialismo vira mapa cartográfico e as velas nunca estão içadas corretamente quando os ventos para lá apontam. Hoje, infelizmente, quase todos dirigem suas ações atentos somente ao retrovisor, tentando fazer certo hoje o que deu errado ontem à tarde. O presente torna-se incerto e o futuro tende a ser uma rota de fuga.

Exemplos dessa cegueira não faltam. Em um dado momento o Estado informa que não há médicos no interior do país, e todos se entreolham como se essa notícia fosse nova, e que alguém, maquiavelicamente, tivesse escondido de nós por décadas! Pois bem, em 2014 continuará faltando médicos nas regiões mais ermas do país, o mesmo em 2015, 2016 e anos à frente. Se muitos enxergam nesse cenário o caos, outros podem identificar nele uma enorme oportunidade. Quem vai estabelecer a diferença é o plano.

Outra “batata quente”, que assola quase todos os hospitais, é a engenharia de processos operacionais. Hospitais são organismos vivos, latentes, intrinsecamente complexos, que dificilmente conseguem absorver postulados rígidos. Assim, seus processos precisam sempre ser examinados a luz de um conjunto de situações nem sempre claras ou pétreas. O planejamento estratégico não desenha os processos da empresa, nem tampouco zela pelo seu gerenciamento (funções do plano operacional, ou plano de contingências). Mas sem o “quem sou eu?”, e o “para onde quero ir?”, o desenho do fluxo de processos passa a ser uma missão ordinária, grosseira e circunstancial. O resultado é que os processos ficam de costas para os objetivos da organização, passam a atender somente aos compromissos do passado, e, não poucas vezes, automatizam os erros e as inconformidades. A gerência, perdida, não sabe para onde ir, e ir para qualquer lugar transforma os processos em colcha de retalhos, joguete político e artifícios pouco corporativos. Planejamento Estratégico não pode ser só uma opção, ou um apoio, mas o leme da embarcação.

Um exemplo clássico, mas que mostra como muitos hospitais não sabem para onde ir, é o desenho dos centros de custeio, ainda atrelados a volumes e rateios (grande parte dos hospitais ainda opera no Volume Based Cost). Trata-se de um modelo que talvez funcionasse no final do século passado, mas quando os hospitais sabem para onde ir e precisam de instrumentação para manter o prumo, não se aplica mais operar dento dessa plataforma. Com a crescente adoção tecnológica e a complexidade dos processos produtivos, os custos indiretos passaram a solapar os hospitais. Todos sabem do seu perigo, mas têm enormes dificuldades em identifica-los e controlá-los. Nesse sentido torna-se claro a necessidade de aferir com precisão cada atividade da empresa (ABC – Activity Based Cost), identificando sua malha de custos indiretos e produzindo indicadores de desempenho que podem facilitar a gestão e colocar a organização dentro de um rumo estratégico. Mas qual é o rumo estratégico? É aquele fartamente estabelecido no Plano Estratégico. Mas, claro, se este não foi feito, ou se foi feito somente a luz das análises contábeis, o rumo estratégico não existe. Talvez o hospital tenha até uma estratégia de rumo, mas sem uma direção comprometida, pode-se rumar rapidamente para baixo pensando estar subindo.

Indicadores de desempenho e ferramentas de Business Intelligence são o ponto de inflexão para a moderna gestão hospitalar. Mas, pouca ou nenhuma serventia tem se a organização não sabe para onde ir, por que ir e, principalmente, como e quando quer chegar. Mais do que indicadores, hospitais precisam hoje de indicações, setas e direção. “Quem sou eu?” pode ser a primeira pergunta para uma grande virada, ou pode ser a última quando a colisão com o fracasso é inevitável.


 Como chegar à Visão Corporativa

visão corporativaPeter Drucker (1909 – 2005) foi escritor, professor, consultor administrativo e é considerado o pai da administração moderna. Ele sugere começar um processo de Planejamento Estratégico buscando resposta as seguintes perguntas: “Quem somos nós?”; “Onde estamos?”; “Onde queremos ir?”; e “Para onde o ambiente externo nos empurra se não fizermos nada?”

Essas indagações exigem muita reflexão, mas um bom começo para responder a questão “quem sou eu?” pode ser a identificação da Visão e da Missão da empresa. Trata-se de um dos mais críticos e importantes passos para se chegar a boas respostas. Nenhum planejamento pode ser considerado sério se as empresas não têm claramente definidas a sua visão e a sua missão. Em geral poucos percebem a importância dessa fase do planejamento, e utilizam suas definições somente como marketing ou como um desejo mais emocional que racional.

Visão pode ser definida como a percepção que a empresa tem das necessidades do mercado e os modos e meios pelos quais ela pode satisfazê-las. Trata-se de um conjunto de intuições e competências que juntas permitem ao empreendedor se sentir preparado para alcançar as demandas do mercado.

O conceito surgiu nas décadas 50 e 60 numa derivação das definições de administração por objetivos. Segundo Warren Bennis, professor da University of Southern California: “uma visão tem uma parte racional (produto de análise) e outra parte emocional (produto de imaginação, intuição e valores)”. Assim, a visão corporativa é composta por uma ideologia central, mais conhecida por “yin” (imutável) e pela visão, também denominada de “yang” (aonde se quer chegar).

A ideologia central não depende de produtos, mercados ou quaisquer outras mudanças, mas da resposta a “quem sou eu?”. Ela se subdivide em (1) Valores Organizacionais e (2) Missão.

Os valores organizacionais são princípios de orientação perenes e essenciais. São intrínsecos e importantes somente para os componentes da organização. A empresa decide por si só seus valores e eles não devem mudar para reagir a efeitos externos (crises, por exemplo), e Missão é a razão de ser da empresa.

Declaração de Visão é a direção que a empresa se propõe a seguir. Mais do que isso, trata-se de um mostruário do que a empresa deseja ser. Ela deve refletir as suas aspirações e as suas crenças. Comumente quem lê a declaração de visão de uma empresa deve poder interpretar a corporação como uma “pessoa”, alguém que eles gostam, confiam, acreditam e sabem para onde vai.

Existem muitas formas, regras, guidelines para se chegar à Declaração de Visão da corporação. De modo geral, o processo consiste em selecionar um grupo de funcionários dedicados, pertencente a vários níveis da empresa, que junto com os acionistas se reúnem e chegam a um consenso sobre a matriz conceitual da empresa. Se a empresa é nova, normalmente o processo é feito somente pelos acionistas.

O grupo deve identificar os valores da companhia, ou seja, o conjunto de crenças e princípios que orientam as suas atividades. Deve haver espaço para que as pessoas se manifestem livremente, que ponderem suas sensações, seus sentimentos e os descaminhos da empresa (se o empreendimento for novo, caberá tão somente identificar os “destinos” imutáveis que a empresa se propõe a seguir). Os resultados alcançados devem ser filtrados (eliminar as fantasias futuristas e os arroubos sentimentais) e traduzidos de forma simples, significando a direção correta e verdadeira da empresa.

Alguns aspectos sempre são importantes na Declaração de Visão: (1) ela deve ser desafiadora, sem ser cabotina; (2) deve ser diferenciada, sem ser inatingível; e (3) deve ser sintética, clara e acima de tudo crível. Como exemplo, sempre é bom lembrar a Declaração de Visão da Apple Computer: “Mudar o mundo através da tecnologia”.

No que se refere à Missão Corporativa, o processo deve ser mais tangível. A Missão da empresa deve refletir a sua razão de ser, o seu propósito e o que ela se propõe a fazer. Trata-se de definir o seu negócio, para quem ele se destina e como a empresa pretende com ele alcançar a sua Visão. Um bom exemplo de Missão pode ser a dos Elevadores Otis, empresa líder mundial no setor: “Nossa missão é oferecer a todos os clientes um meio de locomoção a pequenas distâncias, para pessoas e cargas, com um grau de confiança superior aos produtos oferecidos por empresas semelhantes no mundo inteiro”.

No planejamento estratégico a boa intuição, a criatividade e uma exigente análise das realidades devem trabalhar juntas. Elas são indissociáveis. Um bom planejamento exige visionar com ambição, não limitado ao possível. Mas também exige a ousadia de sonhar quando for prudente e acordar quando necessário.


Guilherme S. Hummel é consultor senior, pesquisador e head mentor do eHealth Mentor Institute (EMI).
Autor dos livros: “eHealth – O Iluminismo Digital chega a Saúde”; “ePatient – A Odisséia Digital do Paciente em Busca da Saúde” e
“eDoctor – A Divina Comédia do Médico e a Tecnologia”.