“Faltam médicos no país. Faltam vagas em nossas Escolas de Medicina. Vamos importar cubanos, espanhóis e portugueses para clinicar no interior do país”. Essas são algumas das meias-verdades que gravitam pela mídia, pelo imaginário da população e pela caneta de nossos governantes. A situação da Saúde Pública no Brasil lembra a velha piada do eletricista que chega à UTI do hospital, olha para os pacientes e diz: “pessoal, respirem fundo, vou trocar o fusível”.
Vivemos desse expediente. São meias-verdade porque não são inverdades nem tampouco representam a completude dos fatos ou das demandas. Formam parte da cenografia de um palco em que tudo é inexato. Na área de Saúde tudo é um pouco controverso, um pouco sinistro, e quase sempre operístico. Enquanto nossos governantes da área sanitária rabiscam leis, retificam protocolos e ratificam modelos de gestão do século XIX, a comunidade médica e seus líderes mostram como a teimosia pode ser tão contagiante como o influenza. É “victoriana” a resistência médica em aceitar as Tecnologias de Informação e Comunicação em suas práticas diárias.
A solução para boa parte dos problemas que atormentam todos os envolvidos no programa “Mais Médicos” chama-se Teleconsulta, ou seja, a possibilidade de realizar uma consulta de primeiro atendimento de forma remota. Médicos e pacientes interagindo através da Web. Simples, barato e, mais que tudo, de rápida aplicação. Nada que não esteja sendo utilizado em boa parte dos países que convivem com o mesmo tipo de problema: prover atendimento minimamente efetivo em áreas geograficamente distantes dos centros urbanos. Estações de videoconferência estão hoje tão avançadas que podem ser acessadas por qualquer indivíduo, de qualquer idade, bastando ele estar localizado dentro de um ciberespaço com boa conectividade.
O receituário de TeleHealth (ou Telessaúde), um subsegmento da área de Telemedicina, já está entre nós há pelo menos duas décadas, sendo que os ambientes acadêmicos já o utilizam em quase todos os países, principalmente na troca de informações entre médicos. A “novidade” é que o mesmo modelo chegou ao usuário final. Podemos conversar com nosso médico através de um skype com tanta facilidade e a um custo tão baixo que chega a ser indigno pensar que precisamos importar médicos para atender a um paciente localizado em regiões carentes de atenção básica. Mas essa é a realidade, ou, a meia-verdade.
Em 2001, antes das Torres Gêmeas virarem pó, os EUA já estavam em guerra. Não contra o Afeganistão, ou contra qualquer outro herdeiro do mal, mas contra os custos de um Sistema de Saúde ineficiente e assombrosamente caro. Nesse campo de batalha, os norte-americanos iniciaram um longo combate onde qualquer ferramenta tecnológica poderia ser decisiva. No mesmo ano, o programa CCHT (Care Coordination and Home Telehealth) já permitia o atendimento remoto aos veteranos de guerra do país (VHA – Veterans Health Administration). Um projeto histórico que já conta hoje com mais de 50 mil pacientes, devendo chegar a 100 mil nos próximos anos. Pacientes e médicos se interconectam através de estações de videoconferência instaladas em vários lugares estratégicos, de modo que ambos possam se comunicar remotamente. Estudo de Caso publicado pela VHA em 2008, envolvendo mais de 17 mil pacientes, mostrou que o CCHT provocou uma dramática redução das internações hospitalares e dos custos de atendimento, gerando também altos níveis de satisfação do paciente. O projeto se propagou e hoje existem ações semelhantes em quase todos os Estados norte-americanos, principalmente naqueles com vocação rural.
Exemplos desse tipo de conexão médico-paciente se multiplicam em todo o planeta. Áreas geográficas com carências sanitárias parecidas com algumas das brasileiras são hoje alvo de inúmeros projetos de TeleHealth, centrados principalmente na Teleconsulta para primary care. O retrato mundial da pirâmide populacional mostra que mais de 4 bilhões de pessoas vivem com menos de US$ 2,50 por dia. Nações cuja renda média é considerada baixa assistem morrer algo em torno de 10 milhões de indivíduos, a cada ano, por doenças infecciosas (malária, diarreia, AIDS), principalmente crianças. Nesse contexto, prover atendimento médico em escala sem o uso intensivo das Tecnologias de Informação e Comunicação é uma utopia.
Na Índia, por exemplo, mais de 800 milhões de pessoas vivem em áreas rurais (em mais de 600 mil aldeias), apresentando enormes desafios em termos de assistência básica, distribuição de medicamentos, controle de endemias e toda a sorte de apoio clínico (65% da população não tem acesso a cuidados de saúde adequados). A Índia possui um médico para cada 1.000 habitantes e, a maior parte deles está sediada em cidades cosmopolitas (Chennai, Bangalore, Delhi, Mumbai, etc.), distantes da brutal demanda sanitária que vem das regiões rurais. Vários projetos tecnológicos vêm se multiplicando no país na última década visando mitigar esse quadro de atenção básica. Um exemplo é o Healthpoint Services India (organização sem fins lucrativos) que disponibiliza serviços de Telemedicina a famílias localizadas em regiões inacessíveis. O HSI fornece quatro insumos básicos: (1) banda larga rural; (2) software de telemedicina; (3) modernas centrais móveis de diagnósticos; e (4) tratamento de água barato.
Por outro lado, o Ministério da Saúde da Índia está dotando as unidades de primeiro atendimento (PHCs – India’s primary health centres) de estações com skype, biometria e mHealth orientadas ao atendimento remoto da população. O programa Citizen Health Information System (CHIS), iniciado em 2012, identificará cada cidadão através de suas informações de Saúde (baseado em biometria). A base de dados do programa vai incorporar informações de nascimento, óbitos e causas de morte, além de comentários sobre mortalidade materna e infantil, vigilância nutricional e uma plataforma ampla de informações dos pacientes captada através dos seus registros eletrônicos de Saúde. O ministério indiano alavanca agora um grande esforço para apoiar em escala os serviços de Telemedicina nos cuidados primários, secundários e terciários. Em outras palavras: mais do que prover atendimento à população, o desafio atual das organizações de Saúde públicas e privadas da Índia é prover conectividade. Sem esta, prover Saúde a um país com dimensões gigantescas e uma população superior a 1,2 bilhão de habitantes, é impraticável.
Não é diferente na China, onde apesar da pujança econômica e da rápida urbanização, milhões de pessoas ainda vivem em comunidades nômades, em zonas cuja única forma de comunicação com o meio externo é o galope dos cavalos. Quando os problemas de Saúde afligem essas populações só lhes restam caminhar longas distâncias ou morrer ao pé da família. Com problemas tão complexos e emergentes, cresce no país a utilização das ferramentas de monitoramento e consulta médica à distância. A China, em novembro de 2010, iniciou seu projeto piloto de TeleHealth, denominado Ideal Life. São mais de 100 mil pacientes da província de Shandong utilizando quiosques interativos e dispositivos de monitoramento remoto. O país concentra hoje uma massa de recursos incomparável para capacitar os serviços de Telemedicina do Estado a atender as populações rurais.
Na África, continente fértil em ineficiência sanitária, existem centenas de projetos de TeleHealth fundeados por órgãos públicos ou por instituições não governamentais ligadas à Organização Mundial de Saúde. Um exemplo está em Botswana, nação da África Austral com pouco mais de 2 milhões de habitantes (IDH: 119º). O país possui desde 2009 o programa Botswana-UPenn Partnership (parceria do Ministério da Saúde com a operadora de telecom Orange Botswana) que atende mais de 19 cidades promovendo teledermatologia, telerradiologia e rastreamento do câncer no colo do útero.
Como vimos no caso dos EUA, o avanço dos programas de Teleconsulta já são rotineiros nos países do topo da pirâmide (G20). No Canadá, um único projeto, o sistema TELUS Remote Patient Monitoring (RPM), implantado pela comunidade de Pointe-de-l’Île, vem reduzindo os custos de enfermagem e aumentando de 30 para 80 o número de atendimentos semanais. Trata-se de um incremento de 167% de produtividade. O TELUS permitiu uma redução média das visitas domiciliares de 12 para 2, com uma economia por paciente por volta de US$ 450.
No Reino Unido mais de 100 projetos de monitoramento à distância estão sendo implementados pelo Serviço Nacional de Saúde (NHS), a maioria orientados a tratar pacientes com patologias crônicas, como a diabetes. Resultados publicados em 2011 pelo relatório Whole System Demonstrator (WSD), que pesquisou mais de 6 mil pacientes da NHS, mostrou uma redução de 15% nas consultas emergenciais, 20% nas internações emergenciais, 14% nas internações eletivas e 14% em dias/leito. O conjunto de ações de TeleHealth no Reino Unido, ainda segundo o relatório, obteve uma redução de 8% nos custos e 45% nas taxas mortalidade.
Quando debatemos os problemas da falta de médicos, achamos que esse é um tema dos países emergentes ou subdesenvolvidos. Errado. A dificuldade de internalizar médicos em zonas remotas é igual em nações mais desenvolvidas. O Royal College of General Practioner, do Reino Unido (órgão semelhante aos nossos Conselhos de Medicina), mostrou recentemente que existe um gap de 8 mil médicos na Grã-Bretanha, sendo que em 2021 o mesmo chegará a 16 mil. Dentro dos modelos de atendimento convencional, no qual paciente e médico devem estar no mesmo ambiente físico, dificilmente o problema será resolvido no tempo e no espaço que a demanda exige. Todavia, as conclusões do sistema britânico de Saúde (NHS) são diferentes das nossas. Eles estão investindo pesado no telemonitoramento e na Teleconsulta, sendo que os projetos são fundeados pelo próprio Estado e propõem uma revolução na Saúde pública.
É sempre importante lembrar que a maioria dos Sistemas de Saúde do mundo ocidental foram projetados e desenvolvidos para um cenário de doenças agudas, sendo que no Século XXI o quadro migrou visivelmente para as doenças crônicas. Em recente edição do Fórum Econômico Mundial, um estudo da Universidade de Harvard mostrou que as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) irão produzir uma perda acumulada da produção global da ordem de US$ 47 trilhões ao longo das próximas duas décadas, o que representa 75% do PIB mundial (2010). Nesse quadro, os principais organismos mundiais que estudam a Saúde (OMS, OECD, Banco Mundial, BIRD, etc.) são unanimes: a “salvação” sanitária passa necessariamente pelas soluções de TeleHealth no âmbito da atenção primária. Esta representa o primeiro ponto de contato entre os indivíduos e a assistência médica, sendo a chave para um atendimento eficiente e multiplicador.
O Brasil atravessa 2013 discutindo o “Mais Médicos”, em parte como resposta ao “mais manifestações”. Com cerca de 400 mil médicos e uma taxa média de quase dois médicos por 1.000 habitantes, o país repensa suas deficiências sanitárias e não decola de seu histórico imobilismo em usar as tecnologias de informação na Saúde. Os números não ajudam o Governo, nem tão pouco a comunidade médica associativa: de 1970 a 2012 houve um salto quantitativo de 557,72% médicos no mercado, contra um salto populacional no mesmo período ao redor de 100%. Temos Estados com carências assistenciais inequívocas, com uma relação médico/pacientes inferior a 1, como Amapá (0,95), Pará (0,84) e Maranhão (0,71). É óbvio que faltam médicos nessas regiões, mas será que em regiões onde eles abundam, como o Distrito Federal (4,09 médicos por 1.000 habitantes), temos um Sistema de Atendimento pleno, de boa qualidade e com real equidade?
Pelas projeções do Conselho Federal de Medicina, na situação atual, em 2020 os médicos serão 500 mil, com taxa de 2,41 por 1.000 habitantes, e em 2050 serão mais de 900 mil profissionais (razão de 4,24). Esse crescimento garante um atendimento melhor? Teremos uma população rural, por exemplo, assistida minimamente? Em 2050, 22% da população mundial terá mais de 60 anos, em comparação com os 11% de hoje (ONU, 2012). As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) já são responsáveis por cerca de 36 milhões de mortes anuais no planeta. No Brasil, corresponderam a um percentual aproximado de 72% das mortes ocorridas em 2007. Como é possível equilibrar o quadro de atendimento dessa massa de indivíduos, que carece de atendimento rotineiro, especializado e de baixo custo, sem o uso intenso das tecnologias de telemonitoramento ou teleconsulta? Mais médicos será a solução?
A resposta do Conselho Federal de Medicina foi dada pela regulamentação de agosto de 2011, que “proíbe expressamente a realização de consultas médicas à distância”, não importando se a mesma seja feita por telefone fixo, por email ou por qualquer outro formato digital (Resolução nº 1974/2011). Sob a óptica de proteger o paciente protege-se a doença, a dor e a decomposição dos custos setoriais.
Seria o Canadá um bom exemplo contra a teimosia das lideranças médicas nacionais? Um único projeto canadense de TeleHealth, promovido pelo Centre for Global eHealth Innovation, e localizado em Toronto, pode ajudar nas respostas. O programa (parceria com a University Health Network) realizou mais de 3.200 Teleconsultas no ano fiscal de 2011-2012, 14% a mais do que no ano anterior. Suportado pela Ontario Telemedicine Network (OTN), o projeto conectou pacientes de 46 comunidades promovendo Teleconsultas com médicos especialistas. A iniciativa cresce de forma consistente na sociedade canadense, à luz da satisfação dos pacientes e dos gestores financeiros. Seriam os médicos do Canadá irresponsáveis?
A Teleconsulta reduz o tempo e a distância entre o paciente e o médico através do uso das estações de videoconferência, que hoje já estão acopladas a qualquer notebook ou PC. Ou seja, com boa conectividade 5% dos médicos do Brasil poderiam atender remotamente mais de 4 milhões de pacientes ao mês. Indivíduos espremidos nos mais variados rincões do país, e desprovidos de Atenção Básica, poderiam ter uma consulta remota, quiçá com um tempo médio de atendimento superior a média do SUS. Da mesma forma, a Teleconsulta permite que médicos especialistas estejam disponíveis nas mais ermas localidades, provendo uma segunda opinião, ou mesmo avaliando uma imagem diagnóstica, sem os deslocamentos necessários que hoje são indispensáveis tanto para o paciente como para o médico. Margem de erro no diagnóstico? Menor do que aquela que um paciente tem hoje quando não dispõe de qualquer atendimento.
Outro ponto importante a se destacar é que um mesmo profissional de Saúde pode atender a dezenas de pacientes à distância se os mesmos puderem se deslocar ao um ponto comum (curta distância) da comunidade (escola, igreja, farmácia, prefeitura, etc.). Basta que haja no local uma estação de videoconferência, conectividade e um atendente com nível de enfermaria (como já ocorre hoje em várias regiões da Índia). Os casos diagnosticados como graves ou dúbios seriam encaminhados de acordo com os mecanismos logísticos atuais. Todos os eventuais inconvenientes poderiam ser equacionados se houver lucidez, boa vontade, participação e o entendimento de que uma assistência primária à distância ainda é melhor do que nenhuma assistência.
Hoje já existem dispositivos médicos capazes do prover diagnóstico à distância (imagem) e que podem ser utilizados na Teleconsulta como suporte ao médico. Alguns requisitos são sempre necessários para a implantação de serviços de teleatendimento: (1) o desenvolvimento de protocolos médicos específicos para Teleconsulta, ou seja, a formatação de um modelo de diálogo médico-paciente capaz de garantir o bom entendimento entre as partes (evitando diálogos longos e marginais ao problema clínico central); (2) um Plano B para problemas técnicos. Nenhuma tecnologia é confiável 100%, e no caso da Teleconsulta torna-se necessário um conjunto de práticas e procedimentos que possam ser acionados quando problemas técnicos ocorrerem durante a comunicação; (3) Avaliação constante. É imperativo que qualquer processo de teleatendimento seja minimamente avaliado pós-realização. Pesquisas de satisfação do paciente, por exemplo, são de fundamental importância no acompanhamento do paciente pós teleconsulta; (4) Utilização de Registros Eletrônicos do Paciente. Um projeto de Teleconsulta pode até começar sem um Prontuário Digital do Paciente (como, aliás, já ocorre em muitos projetos em várias regiões do mundo), mas é intrínseco da qualidade do atendimento e da sua continuidade que o projeto esteja embasado em registros eletrônicos mínimos, que possam ser utilizados por outros médicos nas outras passagens do paciente pela Teleconsulta; (5) Orientações Éticas e Legais. Trata-se da regulação que permite ao projeto responder com seriedade (sem exageros) aos aspectos de privacidade, segurança de dados, legitimidade e legalidade da parte operacional do projeto. Qualquer tomada de decisão médica deve ser legitimada por instruções e parâmetros jurídicos mínimos que preservem ambos os lados (paciente e médicos).
O país possui vários projetos de Telessaúde, gerenciados pelas universidades públicas. Muitos deles com ótimas respostas, mas todos vinculados unicamente à comunicação entre médicos. Alguns programas de Teleconsulta estão caminhando timidamente no Brasil, com várias empresas e algumas Secretárias de Saúde se empenhando em fazer experimentos, mas todos temerosos da pena do CFM, e da contracorrente das meias-verdade. Vivemos no estágio de “paralisia do julgamento”, ou seja, estamos vendo todos caminhar com sucesso numa direção, mas estamos paralisados pelos medos, interesses corporativos e deficiências sistêmicas. “Mais médicos” sem tecnologia, sem conectividade e sem utilitarismo é o mesmo que prescrever a um paciente em estado terminal doses diárias e infindáveis de placebo.
Guilherme S. Hummel é consultor senior, pesquisador e head mentor do eHealth Mentor Institute (EMI).
Autor dos livros: “eHealth – O Iluminismo Digital chega a Saúde”; “ePatient – A Odisséia Digital do Paciente em Busca da Saúde” e
“eDoctor – A Divina Comédia do Médico e a Tecnologia”.
